16 janeiro 2010

Oportuno: TERRORISMO REGULAMENTAR

Transcrevemos da edição mais recente da revista Pedra&Cal, nº 44

Terrorismo regulamentar


Diz-se, ciclicamente, que Portugal tem demasiados edifícios classificados (temos apenas cerca de 700 "monumentos nacionais"). Comparando com os 400 000 edifícios classificados e mais de 9 000 Conservation Areas da Grã-Bretanha, vemos a estreiteza dessa opinião.

Portugal classifica poucos objectos, pouquíssimos conjuntos, quase nada do que se refere a "Património Urbano". Todos querem inscrever os nossos "Centros Históricos" na Lista do Património Mundial, mas ninguém assume as consequências da conservação (e o mínimo, por lei, é declarar esses conjuntos como "Monumentos Nacionais"); poucas das nossas paisagens são protegidas e classificadas como "culturais".

O paradoxo está em que nós, portugueses, não consideramos as nossas cidades antigas e o território como um fabuloso recurso estratégico para a economia de serviços que todos os políticos dizem ser o futuro!
Ao contrário da França, que fez leis para proteger o litoral (Loi du Littoral), para assegurar a protecção e investir nas cidades (Loi Malraux) e paisagens históricas (Loi des Paysages), nós entregamos estes recursos a uma rápida delapidação.

Porquê? A razão essencial relaciona-se com nossa pouquíssima consideração pelas dimensões territoriais e urbanas, o nosso desconhecimento sobre o valor da arquitectura da cidade portuguesa. Por todo o mundo, escolhemos os mais belos lugares para construir as nossas cidades, soubemos como ninguém utilizar o genius loci, adaptar-nos aos contextos e circunstâncias topográficas, incrustar funcionalidades, desenhar com o território poupando recursos e maximizando qualidades. Mas, hoje, desconsideramos, nas nossas políticas territoriais, urbanísticas e patrimoniais, as escalas mais vastas, da cidade e das paisagens património, entregando-as ao atomismo dos interesses locais (no fim prático da REN e da RAN), não garantindo o interesse nacional, quanto mais o mundial.

Na segunda metade do século XX, estourámos com as periferias. Agora, com a crise ecológica e energética, regressamos em força aos centros antigos das cidades. Fazemo-lo com os métodos com que destruímos o território; com a mais selvagem das renovações, a mais imoral das arquitecturas: as fachadistas, i.e., que utilizam a fachada cadáver de antigos edifícios para encobrir vulgares construções, impedindo o nosso tempo de ter rosto.

Pior, mais do que mesquinhos interesses imobiliários, ameaçam hoje o nosso património antigo ou moderno, os apressados regulamentos que transcrevemos para o quadro nacional. No seminário Cidades Históricas e Vida Contemporânea (IHRU e ICOMOS -Portugal), apresentei as consequências da aplicação acrítica ao património urbano dos novos regulamentos térmicos, de segurança ao fogo, de acessibilidade. Chamei, em desespero, "Loucura Regulamentar" a um processo que considera (nos cálculos) as pedras dos vãos de uma fachada histórica como uma "ponte térmica", destruindo o património azulejar, os esgrafitos e stuccos, para colocar ETICs. Não houve orquestração; i.e., quem cumpre um regulamento cai fora do outro; quem assegura todas as exigências da fuga dos incêndios, escancara a casa à intrusão; a loucura de impor a edifícios históricos as exigências que se aplicam a um projecto ex nuovo.

O pior não chegou ainda, e referi a vontade de - perdida a mais eficaz das regras, a dos 45 graus - impor no RGEU a obrigatoriedade de cumprir TODAS as novas exigências quando a reabilitação ultrapassa 50% do custo de um edifício novo de área similar. Um atestado de morte aos edifícios que não são Monumento Nacional ou que não estejam dentro dos 50m "de protecção"; e eis como surge, de mansinho, a pior das renovações. Quantas áreas urbanas temos nós classificadas como de interesse nacional? Faça o leitor uma breve pesquisa (no IPPAR ou no arquivo online SIPA), e ficará estarrecido: nem cidades inscritas como Património Mundial estão classificadas.

Ditas estas coisas não há retorno, esperava reacções difíceis de uma assistência culta e técnica; quando me interpelou o eng.° João Appleton -gelei (arrependendo-me, logo ali, de todos os excessos verbais de antes, de hoje) - e disse: «Como é arquitecto, o Aguiar foi demasiado gentil... não é "Loucura" dos regulamentos, é TERRORISMO REGULAMENTAR!»

José Aguiar, Arquitecto

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