01 julho 2013

"PATRIMÓNIOS" no semanário BADALADAS

nº 45 - publicado em 28 de Junho de 2013

O MEU CLUBE É O TORREENSE – ALGUMAS ESTÓRIAS

 (3ª Parte)

 NINÉU

Não vou escrever sobre o Torreense, instituição que faz parte do nosso património, do qual nos orgulhamos, e que já por três vezes esteve entre os grandes do futebol nacional.
Aproxima-se 2017, ano em que se irá comemorar o 1º centenário do clube, designadamente com a publicação de um livro contendo toda a sua história.
Nesta circunstância, cabe-me apenas relatar alguns factos pessoais.
Comecei a ir ao Campo das Covas muito cedo, pela mão do meu pai. Ao domingo, depois do almoço, íamos ao café do Borba, em frente à igreja de São Pedro. Mal acabava de beber um garoto punha-me na alheta para ver os remates potentes do Sidónio que me deixavam entusiasmado.
Nessa altura fazia recortes dos jornais desportivos, pois o meu pai, sendo caixeiro-viajante, trazia resmas de jornais das suas viagens.

Em 1955 o Torreense subiu pela primeira vez à 1ª Divisão. Lembro-me da loucura que foi a vitória em Santarém e do regresso dos jogadores a Torres. Ainda aí estão para contar, melhor do que eu, o Zé da Costa, o António Augusto, o Mergulho, o Zé Gonçalves e o Ti Góis, célebre massagista. O Torreense era conhecido nessa altura pelos milionários do Oeste, já que até três argentinos faziam parte do plantel – Belen, Forneri e Pellegero.
Américo Belen esteve na origem da criação de uma escola de jogadores. Um dia propuseram que a antiga Escola Secundária (depois, Liceu) fosse jogar com a escola do Torreense. Eu ainda andava no 1º Ano, mas fui escolhido para ir com os matulões do 5º e do 7º ano. Não me lembro do resultado, mas sei que fiquei a pertencer à escola de jogadores. Fizemos poucos treinos e os únicos jogos que fizemos foi com o Peniche. Os resultados pouco interessam, mas marquei o meu primeiro golo e, vá lá, ganhámos por 6-0. Dessa equipa faziam parte o Augusto, por alcunha o Moinante, que andava sempre descalço, e tinha uns pés que mais pareciam blocos de cimento. No dia da apresentação ao público estreámos um equipamento e as respectivas alpargatas. Os pés do Augusto ressentiram-se, pois nunca se tinham visto em semelhantes apertos. E a tal ponto que o tipo passou completamente ao lado do jogo, ao levar todo o seu santo tempo a olhar para as alpargatas. A organização era um pouco incipiente e a actividade da escola ficou por ali.
Em 1958 o Torreense organizou o 1º Torneio Infantil, por iniciativa de Evaristo Silva, no qual participaram o Várzea F. Clube (vencedor), o Castelo, o Forte de São Vicente, e a Paul, com vista à captação de jovens para a criação de uma equipa de principiantes, para participarem na AFL, Associação de Futebol de Lisboa. Fiz duas épocas nos principiantes, cujo treinador era Evaristo Silva e que no caso de vitória nos oferecia um bilhete na 2ª plateia para as ‘matinés’ do cinema de domingo.
Depois vieram os juniores. Na 1ª época só fiz um jogo porque o meu pai me puniu ‘severamente’ não me deixando jogar, por as notas no Liceu não serem muito famosas. Na 2ª época já foi diferente. Fizemos uma grande época. O distrital foi canja e até fomos ao campeonato nacional.
Nessa altura o Tóino do Penedo (Runa) era o nosso defesa direito. Num tal jogo em Lisboa o extremo esquerdo da equipa adversária passava por ele como ‘cão como vinha vindimada’. No final queixava-se ele «não sei o que tinha hoje, não tinha força nas pernas». Os jogos eram ás 10h30 da manhã, e tínhamos que sair de Torres às 8 horas. Perguntámos-lhe: – Tomaste o pequeno almoço? Ele disse que sim, que tinha bebido um achocolatado, cujo slogan era «Tody dá força». – E das outras vezes? ripostámos nós. A que ele respondeu, cheio de convicção:– «Das outras vezes, como um bife com batatas fritas e uma baldaça de tinto».
Na época de 63/64 subimos à 1ª Divisão, praticamente com a malta da terra. Claro que a 1ª Divisão era outra loiça. Vieram dois ou três profissionais e os restantes tinham os seus empregos, treinando das 19h30 às 21h30. Os prémios de jogo eram chorudos. Por vitória em casa recebíamos 100 escudos (50 cêntimos na moeda actual), e por vitórias fora, 200 escudos (1 euro). A excepção foi quando ganhámos ao Sporting por uns rotundos 3-0 em que recebemos mil escudos (5 euros). Uma verdadeira pechincha!

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Enquanto alinhavo estas estórias não me sai do pensamento o meu querido amigo e velho companheiro Vítor Campos. É para ti que me dirijo. Estiveste comigo em quase todos estes momentos acabados de relatar, lembras-te? Dos jogos do Liceu, passando pelo Várzea, pelos principiantes, pelos juniores e pelos seniores. Travas neste momento uma luta difícil, mas porque sempre foste um lutador sei que vais ganhar mais este jogo.

Sessenta anos de companheirismo e amizade fazem com que esteja sempre contigo. Mas também os torrienses estão todos a fazer força por ti.








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Nº 44 - publicado em 7 de Junho de 2013

 A MALTA DA MINHA RUA
(2ª Parte)

 NINÉU

No período da minha infância e adolescência (finais da década de quarenta e princípios de cinquenta) a rua era pertença dos rapazes; a casa era o espaço próprio para as meninas.
Os rapazes iam desenvolvendo as suas competências, brincando e jogando, desde as épocas do berlinde, do pião, das caricas, até ao mais desejado: o jogo da bola. A rua onde eu nasci – a rua Cavaleiros da Espora Dourada, no Centro Histórico – não era alcatroada, nem tinha sinais de trânsito, e um automóvel passava de vez em quando. Para jogar futebol bastavam quatro pedras a fazer de baliza e uma bola por mais minúscula que fosse. As jogatinas eram interrompidas, por vezes, à passagem da galera do Clemente, puxada por quatro cavalos, que ia à estação do Caminho de Ferro buscar cereais para a moagem, com uns homens em cima, descalços e com uma saca de serapilheira aos ombros para descarregarem os sacos. Mas também eram interrompidas às quintas-feiras à tarde, à passagem do gado que vinha da Malveira e se deslocava para o matadouro, deixando o nosso ‘estádio’ cheio de bosta e impraticável durante uns dias. Os companheiros das brincadeiras eram o Béticha, o Faninha, o Zé Luís que morava nas traseiras da minha casa, mas também o Tonecas e o Tó. Havia ainda, uns mais velhos e outros mais novos – o Tobau, o Gilberto, os irmãos João, Murilo, José e Pedro, mas também o António Alberto, o Virgílio e o Tatonai. Esta era a malta da minha rua e os laços que criámos ainda perduram nos dias de hoje.

Desembocava a minha rua numa zona onde, num perímetro mais ou menos pequeno, havia cinco tabernas. E para que o leitor menos familiarizado com estes nomes e este local da cidade se possa situar dir-lhe-ei que se trata do espaço vizinho da «Fábrica das Histórias», a nascente do Tribunal. Era a taberna da Ti Emília Popó (onde trabalha um canalizador e há pouco tempo havia um quiosque), cujo irmão Jaime Pópó, sapateiro, tinha em mim o seu melhor cliente, pois – não tendo sido ainda inventados os sapatos de ténis – as meias solas gastavam-se em pouco tempo. Era a taberna do Santo Antoninho, onde se encontra o café ‘Oceano’. Era a taberna do Zé Pequeno, onde hoje existe um cartório. E ainda a taberna do Zézinho do Casão, onde fica o restaurante ‘Adélia’. Para não falar da taberna da viúva do Zé Roberto que ficava ali à ilharga, a um passo da minha casa. Ao lado da taberna do Zé Pequeno havia a mercearia do Ti Carlos (actualmente, a Sotopal) onde íamos comprar os rebuçados da bola, sempre na esperança de nos calhar a bola de catchu.
A vida corria lenta, a preto e branco, como nos filmes do neo-realismo italiano. Não havia semana-inglesa, nem reformas, nem se falava de «estado social». Num tempo em que, só no primeiro dia, os pais levavam os filhos à escola, e diziam aos professores que se os meninos se portassem mal lhes chegassem a roupa ao pêlo. Como é diferente do tempo de hoje em que são os familiares que invadem as escolas para baterem nos professores!
Em frente à taberna do Zé Pequeno era o local da venda da batata, um espaço rectangular delimitado por um muro e um lancil, óptimo para a prática do futebol. Nesse sítio havia um urinol e um chafariz, hoje desaparecidos. Posteriormente a venda da batata transferiu-se para a praça Machado dos Santos, ainda hoje com o nome popular de ‘Praça da Batata’.
Nessa época dois acontecimentos vieram emoldurar a vida desportiva do burgo. A inauguração do ringue do Sporting de Torres, com a presença dos nossos campeões de hóquei em patins: o Emídio Pinto, o Raio, o Edgar, o Jesus Correia e o Correia dos Santos. Foi a vinda desses jogadores que motivou a rapaziada a ir para o Pátio Alfazema (também conhecido por ‘Caldeira’) jogar hóquei, mas sem patins, e com uns sticks manhosos feitos de uns paus e pregos. O outro acontecimento foi o arranjo do Jardim da Graça, pelo ano de 1954, em que o coreto deu lugar ao obelisco. E o que mais apreciámos foi a autêntica pista de atletismo, em terra batida – que ainda lá está, e cujo desenho corresponde ao empedrado que circunda o Jardim da Graça – onde realizávamos grandes provas de velocidade.
A memória é a faculdade de saber esquecer. E porque é selectiva depende da maneira de ser e estar de cada um. Mas sempre na convicção e na expectativa, ao reflectirmos sobre a nossa história individual, de poder ser entendida como parcela de um património social comum.




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Nº 43 - publicado em 17 de Maio de 2013

EU NASCI NO CENTRO HISTÓRICO
(1ª Parte)

 NINÉU

            É verdade, eu nasci no Centro Histórico, quando Torres Vedras pouco mais era que o dito ‘Centro’. A Várzea acabava na Rua Álvaro Galrão, a Rua Teresa de Jesus Pereira estava longe do seu nascimento e ir ao Lar de S. José era uma aventura, pois ficava muito fora de portas.
Vou mergulhar na infância, fazendo um apelo à memória, pois a memória traz-nos a vida anterior, mas também a vida interior feita de afectos e sentimentos. O que eu quero trazer aqui é um testemunho pessoal e despretensioso desse meu tempo, isto é, fazer novamente ressurgir os sítios e os nomes de pessoas pouco lembradas ou já esquecidas.
            Nasci na Rua dos Cavaleiros da Espora Dourada. Nasci em casa, como era costume nesse tempo, ao contrário do que acontece hoje, mercê de novas condições sociais, económicas e científicas. A minha rua, antiga Rua dos Mercadores, parte do cimo das escadinhas junto à zona do castelo e vai desembocar na Porta da Várzea, a um passo da actual ‘Casa das Histórias’. O traçado mantém-se intacto – ligando dois bairros com grandes pelejas futebolísticas, os castelhanos e os marroquinos – apesar da alteração do casario e, obviamente, dos moradores que agora o habitam.
            Caminhando do fim das escadinhas em direcção à Várzea, do lado direito morava o Josué, saxofonista nas horas vagas, mas não sei bem se ele pertencia à orquestra ‘Os Relâmpagos’, ou à sua rival ‘Os Lusitanos’ em que o meu pai era baterista, orquestras de metais ao bom estilo de Glen Miller. Em frente tinha o José Correia uma oficina de marceneiro. Continuando do lado direito havia a ‘Casa do Patim’, uma casa senhorial onde se instalava a comitiva Real na passagem por Torres Vedras – e, no meu tempo de infância, servindo de depósito da Casa Hipólito. Seguiam-se umas casas baixinhas, vivendo, numa delas, a menina Zulmira, cinquentona, que alugava os fatos de anjinho para as meninas levarem nas procissões. Ainda do lado direito aparecia uma correnteza de casas baixas que davam para um largo onde a galera do Clemente estacionava – mesmo em frente à porta da igreja de S. Tiago. Ainda lá continua o prédio da moagem. Nesse mesmo largo, ao centro, existiam duas grandes palmeiras. Prosseguindo na Rua Cavaleiros da Espora Dourada encontramos um armazém da Casa Hipólito, onde morava no primeiro andar a pessoa com mais posses da minha rua, o António Hipólito Júnior. Mais uma casa de rés-do-chão do Ti Augusto e lá está o prédio onde eu nasci, número 9, com a sua fachada ainda intacta. No primeiro piso, e a meu lado, vivia o Ti Faustino, com um talho na praça; no piso de cima moravam dois construtores civis, o Zé Milhariço e o António Ubaldo, velhas glórias do Torreense. Seguiam-se mais umas casas baixas e um albergue onde pernoitavam pessoas de fracas posses.
Este panorama, descrito de um modo sucinto, dá-nos a imagem de uma rua com muito movimento, devendo-se isso, entre outras razões, ao facto das famílias serem muito numerosas. A existência do filho único era coisa rara nessa época. Havia casas muito pequenas, só com duas divisões, onde permaneciam um casal com cinco filhos. Por exemplo, nos últimos trinta metros desta rua, só em três casas viviam treze jovens. Estávamos no pós-guerra, e era usual muitos meninos andarem descalços e com fundilhos nos calções. Não havia televisão e a rua era o espaço de socialização por excelência.

± Texto escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico



           


1 comentário:

  1. Anónimo5/8/13

    Gostei de ler estas memórias do Ninéu... Algumas dizem-me muito, mesmo sendo mais novo.
    Eu também nos anos 60 e 70 vivi intensamente a minha juventude, em lugares como estes da então vila de Torres Vedras, infância passada para norte, para lá do rio sizandro, no Choupal das minhas memórias

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